Uma equipa de investigadores da Universidade de Aveiro (UA) desenvolveu uma tecnologia inovadora cujo princípio permite criar uma nova classe de materiais vivos implantáveis que podem transformar a forma como órgãos e tecidos são reparados ou mesmo substituídos.
Tal como acontece com os tecidos humanos durante o seu desenvolvimento, a criação de tecidos em laboratório costuma ser um processo lento, e depende das interações naturais entre as células para formar uma matriz de suporte.
Contudo, uma equipa de investigadores do Grupo de Investigação COMPASS, que faz parte do CICECO - Instituto de Materiais de Aveiro, liderada por João Mano, conseguiu modificar células humanas para se unirem, formando estruturas tridimensionais complexas designadas de “géis celulares”, independentemente do tipo de célula utilizado.
A inovação, recentemente publicada na prestigiada revista científica Nature Materials, possibilita a produção rápida e personalizada de estruturas semelhantes a tecidos e pode revolucionar a medicina regenerativa.
Pedro Lavrador, Beatriz Moura, José Almeida Pinto, Vítor Gaspar e João Mano assinam o estudo.
A tecnologia, sob a qual foi efetuada um pedido de patente pela UA, é baseada em princípios de glicoengenharia celular, e tem como componente fundamental a química click bio-ortogonal, uma classe de reações químicas que podem ocorrer em sistemas biológicos sem interferir com os processos bioquímicos naturais, a qual foi recentemente reconhecida com o Prémio Nobel da Química em 2022.
"Desenvolvemos uma forma de modificar a superfície das células para que se liguem como um sistema ‘chave-fechadura’, permitindo a criação rápida de materiais celulares vivos e com propriedades semelhantes às dos tecidos humanos", explicam os investigadores da UA.
Estas células são ‘programadas’ para se comportarem como blocos de construção e podem ser manipuladas e combinadas como se fossem peças de Lego vivas, criando assim tecidos adaptáveis a diferentes finalidades médicas, como reparação de órgãos danificados e, ainda, ‘máquinas vivas’ para aplicações industriais ou ambientais e desenvolvimento de novos alimentos.
“Um dos aspetos mais entusiasmantes desta tecnologia é que os materiais criados são realmente ‘vivos’ no sentido em que conseguem interpretar o seu ambiente e interagir ativamente com outros tecidos. Estes materiais têm a capacidade de se auto-reparar e de se reforçar mecanicamente ao longo do tempo, evoluindo de maneira semelhante à pele ou aos ossos", afirma a equipa.
Como os materiais convencionais não são vivos, não possuem a capacidade de se mover por si próprios, não conseguem recuperar massa perdida, nem adaptar-se a diferentes contextos de forma instintiva. Por outro lado, a inovação portuguesa não só permite desenvolver materiais que incorporam estas capacidades biológicas, como também mostram um maior potencial terapêutico na regeneração de pele em comparação com hidrogéis tradicionais que contém células. Um aspeto que torna esta tecnologia particularmente promissora.
A simplicidade e escalabilidade são mais dois pontos fortes da tecnologia. "A nossa tecnologia não requer meios de cultura complexos, modificações genéticas ou equipamentos dispendiosos", destacam os investigadores.
A equipa sublinha a acessibilidade e facilidade de implementação em diferentes laboratórios, o que pode facilitar a produção em larga escala.
Além disso, a flexibilidade desta técnica “permite combinar diferentes tipos de células humanas para criar tecidos customizados e específicos para cada paciente", salientam, reforçando o potencial desta inovação para a medicina regenerativa.
A descoberta representa assim um avanço significativo na bioengenharia de tecidos vivos em laboratório, onde será possível reparar tecidos humanos danificados, através de terapias celulares personalizadas.
Desde sempre que os materiais são fundamentais para o desenvolvimento de utensílios e soluções para diferentes aplicações.
Desde ferramentas mais simples até dispositivos extremamente sofisticados, destacam-se áreas como a microeletrónica, nanopartículas para aplicações em medicina ou estruturas usadas na indústria aerospacial.
Tradicionalmente, os materiais têm sido classificados com base nas suas características moleculares, como metais, cerâmicos ou polímeros (plásticos ou macromoléculas de origem natural).
Contudo, e apesar de já terem sido desenvolvidos materiais capazes de alterar as suas propriedades no tempo e no espaço, ou com capacidade de responderem a estímulos externos, como alterações de temperatura ou exposição à luz, estes sistemas, desenhados para cumprirem funções previamente definidas e limitadas, são essencialmente inertes.
No mundo vivo, as células têm um comportamento bastante distinto.
Neste universo, as células adaptam-se a múltiplas condições ambientais, produzem proteínas para comunicar e interagir entre si e dão origem, por exemplo, a órgãos ou a organismos complexos.
No plano vivo, as células podem multiplicar-se, maturar, evoluir com o tempo e, mesmo, exibir um desempenho que pode ser programado ao nível dos genes.
A biologia é a plataforma de fabrico conhecida mais complexa de todas, tanto a nível molecular como à macro-escala.
Neste sentido, a ‘biologização’ da ciência dos materiais, assume que a biologia possui propriedades intrínsecas que estão longe de serem alcançadas pelos materiais sintéticos feitos pelo homem, e pretende abrir caminho ao desenvolvimento de uma nova geração de materiais – os materiais ‘vivos’, com funcionalidades exóticas.
O conceito totalmente disruptivo, explorado pela equipa de investigação da UA, envolve a utilização desses sistemas vivos para fabricar dispositivos com propriedades totalmente novas, e capacidade de substituir os materiais convencionais em algumas aplicações mais exigentes.
Texto e foto: UA