Um outro 25 de novembro: retrocesso civilizacional (a Violência contra as Mulheres continua a persistir)
Enquanto alguns se focam em revisitar e reescrever a história que tanto os derrotou (direita e extrema direita) como ao extremo que dizem combater, numa pífia tentativa de “Spinolizar” a conquista da liberdade e da democracia, há um outro 25 de novembro que precisa, urgentemente, de um 25 de Abril (aquele que, verdadeiramente, conta).
Em pleno século XXI, Portugal continua confrontado com uma realidade brutal: a violência contra as mulheres persiste e intensifica-se, prejudicada por estruturas políticas, sociais e culturais que insistem em falhar.
Os dados recentes, divulgados pela APAV e pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), são sintomáticos do nosso fracasso coletivo. O silêncio e a desvalorização por uma parte significativa da sociedade (nomeadamente a direita conservadora e a extrema-direita) revela não apenas indiferença, mas uma visão retrógrada do mundo que normaliza o sofrimento e a menorização da mulher.
Um flagelo persistente
Segundo a APAV, entre janeiro e agosto de 2025 foram apoiadas 14.008 vítimas, das quais 8.162 eram primeiras ajudas. Mais chocante, 75% dos casos estão relacionados com violência doméstica e dessas vítimas 76,4% são mulheres.
Por outro lado, as forças de segurança (GNR e PSP) registaram, até 30 de setembro, 25 327 ocorrências de violência doméstica, o valor mais alto dos últimos sete anos. Nesse mesmo período, contabilizaram-se 18 homicídios que vitimaram 16 mulheres vítimas.
Esses números não são abstrações: representam corpos marcados, vidas interrompidas, famílias despedaçadas. São a evidência de que a “dignidade humana” proclamada nas leis está longe de se concretizar no dia a dia.
Retrocesso civilizacional e o silêncio político
A alarmante e preocupante magnitude destes dados denuncia um retrocesso civilizacional. Vivemos num país com instituições democráticas, num Estado de Direito com leis que, teoricamente, deveriam proteger as vítimas, várias redes de apoio e, ainda assim, não conseguimos travar este ciclo de violência. Não basta cuidar das vítimas (o que por si só é, obviamente, necessário). É urgente combater a raiz do problema: repensar o quadro legislativo e penal, mudar mentalidades, desmontar os alicerces patriarcais que sustentam esta criminosa realidade.
Mais preocupante é o silêncio ou o discurso complacente de setores da nossa vida política, nomeadamente da direita conservadora e da extrema-direita, que, muitas das vezes, minimizam a gravidade da violência de género ou agem como se a “questão da mulher” fosse secundária nas suas agendas. Se não se pronunciam com firmeza, não é só por omissão: é uma lacuna ideológica. A visão conservadora insiste num papel tradicional para a mulher: submisso, doméstico, reservando à esfera privada e familiar grande parte de sua identidade. Esta visão alimenta, consciente ou inconscientemente, um ambiente no qual o poder desigual no interior do lar é tolerado ou, até, legitimado.
Quando a política não se compromete, de forma incisiva, com a igualdade de género, quando não aposta numa real e concreta educação emocional, em masculinidades saudáveis ou em recursos estruturais para vítimas, o Estado abdica do seu dever mais básico: proteger as pessoas mais vulneráveis.
Violência Física, Sexual e Psicológica: Um direito violado
A campanha da CIG para o Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres lembra-nos que a violência não é só física ou sexual, mas também psicológica e social, e continua a ser uma das mais frequentes violações de direitos humanos que minam a dignidade das vítimas e atacam as suas liberdades mais elementares.
Socialmente, a violência de género está entrelaçada com desigualdades nas esferas do emprego, da família e das dinâmicas e vivências sociais. A mulher ainda enfrenta inúmeras discriminações de género, umas, por vezes, explícitas, muitas outras subtis, que perpetuam um sistema de dependência económica e social, o que torna mais difícil romper estes ciclos de violência.
A Causa da Inércia: falta de responsabilidade e vontade política
Há uma irresponsabilidade evidente das elites políticas e do poder. Se os números e as estatísticas demonstram estes níveis, sublinhando, ano após ano, este flagelo social, então não faltam dados que sustentam e espelham a realidade… faltam medidas e políticas eficazes. Falta agir.
Faltam políticas preventivas a longo prazo, faltam ações robustas que desafiem mentalidades, ideologias e estruturas de poder patriarcais. Faltam investimentos reais em acolhimento, em programas para agressores, em educação nas escolas.
Este vazio torna-se ainda mais gritante quando se observa a retórica (ou a ausência dela) de parte do poder político: onde estão os discursos fortes contra a violência de género? Onde está a autocrítica em relação à cultura machista que muitos grupos romanticamente defendem? Se a igualdade de género não é uma prioridade política, então, enquanto sociedade, estamos todos a falhar.
É preciso mais do que simbolismos
A urgência é clara e emergente. Por mais importante que o sejam (e são) não bastam as campanhas apenas a cada cíclico 25 de novembro, não basta a mobilização simbólica. É preciso uma urgente transformação estrutural e cultural.
Reconhecimento e responsabilidade política. A desigualdade de género e a violência doméstica não são “questões menores”, mas crises sociais e humanitárias. O poder deve comprometer-se com políticas concretas, com metas, com ações.
Educação e sensibilização. Desde cedo, nas escolas, é essencial educar para igualdade, para o respeito, para a dignidade, para os direitos humanos, para a liberdade, para desarmar padrões patriarcais e sociais que normalizam toda a violência contra as mulheres.
Apoio eficaz às vítimas. O reforço da rede nacional de acolhimento, a defesa da condição de vítima, a garantia do apoio jurídico, psicológico e social. A APAV – e muitas outras associações e entidades - desempenham um papel vital, mas os recursos públicos devem crescer na mesma proporção do problema.
Responsabilização dos agressores. Agir não apenas após o crime, mas também na atempada prevenção. Programas de reabilitação, penas efetivas, monitorização dos contextos.
Pacto social mais amplo, com o envolvimento das empresas, associações e organizações, com a participação cívica e comunitária, na promoção de um pacto sustentável pela igualdade, responsabilizando todos os setores da sociedade.
O aumento, este ano, das ocorrências de violência doméstica, aliado ao elevado número de mulheres mortas, não é apenas um dado num relatório: é um golpe à nossa consciência coletiva, à democracia e à liberdade. É a prova de que ainda estamos longe de erradicar esse flagelo que envergonha qualquer Estado de Direito Democrático.
Enquanto parte do espectro político (especialmente à direita conservadora) continuar a encarar a violência contra as mulheres como um problema secundário, enquanto tratar a igualdade e a liberdade como retórica e não como prioridade, estaremos a tolerar o intolerável retrocesso social.
É hora de romper este silêncio… não só no dia 25 de novembro, mas todos os dias.
"Não há desculpa" (#NoExcuse). Ou como bem lembra a APAV… “roxo para vestir, não para marcar” (Stop the Purple).