Artigo de Opinião

Um certo “género” de educação no ensino

30.07.202522:24
aulas de cidadania e a exclusão da sexualidade

Nem menina, nem menino... nem coisa nenhuma.
Mais ainda que um retrocesso, um atentado educacional e um crime político.
Um certo 'género ideológico'.

O Governo decidiu, depois dos problemas de acesso aos respetivos formulários (apesar de manter a restrição do número de caracteres disponíveis para os contributos), alargar até 5 de agosto o prazo da consulta pública às Aprendizagens Essenciais da disciplina de Cidadania, no âmbito da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania.

Vamos deixar de lado o facto de uma “consulta pública” ser um instrumento meramente normativo que reduz e limita a participação dos cidadãos na vida pública e nas políticas públicas a implementar, dando de “barato” a dimensão nacional do processo.

Mesmo assim, este contexto não disfarça ou dilui (antes pelo contrário) o que está essencialmente em causa: um retrocesso educacional e civilizacional, com uma clara e evidente sustentação ideológica, à qual não é alheia a cedência política à narrativa da extrema-direita nacional, aos “Núncios” e às “Pegados” desta vida.

A escola tem (ou deve ter) um papel fundamental no desenvolvimento integral das crianças e dos jovens, muito para além da simples transmissão de conteúdos académicos. A escola (incluindo todas as suas vertentes, como as universidades) é um espaço (para além do físico/edificado) privilegiado de socialização, formação de valores, construção da identidade e, de forma abrangente, o desenvolvimento de competências cognitivas, emocionais, sociais e humanistas/éticas.

A reestruturação que o Governo pretende realizar na Educação para a Cidadania com a eliminação ou a completa desvalorização (subversão) das temáticas da sexualidade/educação sexual nada tem de reformista. É o recuar ao tempo em que a Escola era o meio ou instrumento ideológico de controlo social e de propaganda do Estado, assente no nacionalismo e no conservadorismo vigentes e doutrinais, aos quais se juntavam a obediência ao Estado, a aprendizagem seletiva e a moral e valores tradicionalistas religiosos (católica), aliás prolongado durante algum tempo (já após 1974) com a denominada “disciplina” de Religião e Moral.

A realidade é que esta opção governativa, que retira a abordagem direta à sexualidade e educação sexual (os termos não surgem em nenhuma linha dos documentos em consulta), está repleta de contradições e incoerências.

Primeiro, ao contrário do que o Governo sustentou - acabar com o alarme das famílias, como se o caso dos dois alunos irmãos de Famalicão fosse representativo - a reformulação dos conteúdos criou uma agitação e indignação, esta sim, coletiva que envolve a sociedade, alunos e docentes (são vários os exemplos trazidos a público), diretores escolares e especialistas.

Segundo, ao contrário do que Luís Montenegro já indiciava no Congresso do PSD, em outubro de 2024, “libertar a disciplina das amarras de projetos ideológicos ou de fação”, a exclusão da sexualidade e educação sexual (tal como aconteceu, no início deste ano, com a eliminação do manual “O direito a Ser nas escolas” que abordava a descriminação sexual) não é mais que a conceção ideológica e de fação de uma temática que é, em toda a sua abrangência, de desenvolvimento social e coletivo, da ética e das relações em sociedade, universal (de e para todos), do direito fundamental e do conhecimento cognitivo e científico. O que está em causa é a ideologia fundamentalista e conservadora que pretende impor ao coletivo e ao universal o que é do foro pessoal e individual (em muitos casos, questionável, até)… o retrocesso a uma educação de “confessionário”, com os riscos e as consequências que estão bem na memória de todos (nomeadamente as vítimas).

Além disso, por mais cambalhotas explicativas que o ministro Fernando Alexandre queira dar (mesmo que não colham), há uma verdade em parte da argumentação quando refere que “os documentos tornados públicos são apenas uma descrição muito sintética daquilo que vai ser trabalhado na disciplina". E este é que é, de facto, o problema. É que a abordagem à sexualidade e à educação sexual foi de tal forma resumida e sintetizada que acabou por desaparecer como terminologia, referência, conteúdo programático, pedagógico e cognitivo.

Outra contradição reside na aparente ausência de dados, estudos (o que foi encomendado nem se sabe se alguma vez deu o primeiro passo), pareceres pedagógicos e científicos (diretores escolares, docentes, alunos, psicólogos, médicos, …) que sustentem a condenável medida governativa. E mal é quando a escola (que não tem, nem deve substituir os pais, nem ser complementar ao papel da família) estratifica, padroniza e elitiza disciplinas, conteúdos programáticos e cognitivos ao sabor das vontades externas. O que dirá o Ministro da Educação, neste caso da (des)educação, quando algum pai questionar a matemática, a filosofia, a gramática, a física, a biologia, negar as ciências naturais (como as alterações climáticas à cabeça) ou criticar que a ‘escola negue que a terra é plana’?!

É que neste contexto, sob o peso da instrumentalização ideológica que este governo nega, mas que é o mais proeminente defensor, há nesta proposta de pseudo reforma, uma evidente negação porque sustenta a medida com a redução da sexualidade e da educação sexual à mera relação sexual. Ora, a sexualidade e a educação sexual são conceitos científicos, com abordagens multifacetadas que vão desde a orgânica e da saúde (biologia e medicina/saúde como as doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez precoce, etc.), da saúde mental, da psicologia e do comportamento, das relações sociais e humanas (violência no namoro, afetividade, etc.) até ao direito (liberdades, direitos e garantias).

Desistir da aprendizagem, do conhecimento científico e cognitivo, dos fatores de socialização que lhe são inerentes, não é reformar… é retroceder, com graves implicações no desenvolvimento pessoal e na sociedade.

Perante a realidade, os números e os estudos que revelam problemas significativos na perceção que crianças e jovens (já para não falar de adultos) têm da sexualidade (no sentido lato), esta intenção do Governo (que não se vislumbra que se altere, infelizmente) é uma oportunidade gravemente perdida para, isso sim, reformular conteúdos, criar programas mais eficazes e conceitos pedagógicos mais estruturados, continuadas e assentes em evidências científicas que deveriam solidificar e dar robustez ao seu ensino e aprendizagem.

Mais ainda que um retrocesso, a medida é um atentado educacional e um crime político.