Artigo de Opinião

A subliminar ofensa à democracia local

28.09.202517:27
comunicado Rádio RIA 22SET2025

Ameaçar e intimidar jornalistas é fragilizar a democracia. Pior ainda… defender a sua normalização é o espelho do exercício de poder que enfraquece a governação e a democracia locais.
Os factos, ocorridos na passada segunda-feira (22 de setembro), foram claros e objetivos: Comunicado da Ria - Rádio Universitária de Aveiro (“um jornalista da Ria - Rádio Universitária de Aveiro foi alvo de intimidações e foram proferidas declarações falsas sobre o projeto, o seu financiamento e a sua independência”). Por si só, objetivamente, isto não é só grave, como é, também, alarmante.

O jornalismo é um dos pilares essenciais da democracia. Sem uma imprensa livre, independente e plural, o cidadão perde o acesso a informação rigorosa, factual, diversa e contextualizada, elementos indispensáveis para a formação de uma opinião pública esclarecida. Num tempo em que a desinformação se propaga com rapidez e os discursos populistas ganham terreno, o jornalismo de qualidade, mesmo que em crise, cumpre a nobre função de separar factos de manipulações, dando voz à verdade e à razão pública. Defender o jornalismo é, por isso, defender a democracia: é garantir que o poder continua a ser escrutinado, que a diversidade de opiniões é respeitada e que o espaço público permanece um território de debate livre e informado.
Quando a informação se transforma em propaganda e o jornalismo se limita a repetir discursos ou narrativas, o cidadão deixa de ter ferramentas e factos que lhe permitem decidir com consciência, rigor e sentido crítico. Uma sociedade sem imprensa independente e amarrada à subserviência é uma sociedade de olhos vendados e sem futuro. Ao jornalismo cabe o papel de antídoto contra o obscurantismo e o abuso de poder.
É certo que perguntar incomoda e inquieta, querer (e dever) saber mais, às vezes, perturba. Mas é esse o papel do jornalista: não aceitar o óbvio, não se satisfazer com a resposta fácil, não confundir “nota de imprensa ou comunicado” com notícia. Num tempo em que é tão fácil e constante criticar e julgar a comunicação social, o jornalismo tem o dever de ser teimoso e persistente na procura da verdade, na defesa da ética, na recusa em ser cúmplice do silêncio ou da dúvida. Informar/noticiar não é repetir. É questionar, confrontar, contextualizar, procurar a verdade com honestidade intelectual e, sobretudo, colocar sempre o interesse público acima de conveniências ou pressões. É transmitir ao cidadão não apenas o que aconteceu, mas o que isso significa e representa. É ser mediador ativo entre os factos e a realidade (e a sua construção) e a comunidade.

Mas tão ou mais preocupante, quanto ao futuro da política local e da democracia em Aveiro, que os factos ocorridos com o jornalista Gonçalo Pina da RIA – Rádio Universitária de Aveiro no decurso do apelidado “Encontros com Aveiro”, de segunda-feira, foi a “repetição”, passados apenas três dias, deste desrespeito e ataque ao jornalismo com as lamentáveis declarações do candidato da “Aliança com Aveiro”, na segunda edição do evento, no dia 25 de setembro, com a tentativa de “normalização” dos acontecimentos  (agora, com as “costas largas” da proteção governativa nacional… só assim se consegue fazer notar – acha ele): «uma campanha natural faz-se, naturalmente, daqueles momentos que podem ter rebuçados, porque não, como tivemos no outro dia. Embora haja pessoas que ficam intimidadas por uns rebuçados. Nem toda a gente entende este subliminar, mas outros entendem».

O que preocupa muitos aveirenses não são uns rebuçados ou uma campanha e um projeto para o Município subliminarmente vazios e inócuos (ao ponto da perceção de uma eventual derrota provocar a “avalanche política governativa” ou o flic-flak do apoio local como tábua de salvação da campanha).
O que preocupa (e devia preocupar todos os aveirenses) é esta revelação de um inquietante sintoma de degradação da cultura democrática no poder local em Aveiro, percetível agora, como o foram estes últimos anos, por exemplo, na Assembleia Municipal de Aveiro, quando se ultrapassa, em muito, o plano do confronto eleitoral, do confronto partidário e da política para tocar o cerne das liberdades fundamentais e do valor da democracia. A tentativa de silenciar ou intimidade quem questiona é um reflexo autoritário, incompatível com o espírito de uma sociedade livre. Num Estado democrático, questionar é um direito e uma obrigação, tanto para o cidadão como, sobretudo, para o jornalismo.

O papel do jornalista não é agradar. É questionar, investigar, contextualizar e dar voz ao contraditório. O jornalista é, em última instância, um representante do interesse público, não um elemento decorativo em cerimónias políticas ou o mero eco (papagaio) da narrativa oficial. Exigir-lhe subserviência ou "respeito" entendido como bajulação é uma distorção condenável da função da comunicação social na democracia.

Mas há, a par desta criticável e inqualificável situação, uma outra nota que importa realçar.
Não passou assim tanto tempo que muitos de nós, da área do jornalismo, assessoria ou comunicação, ou simplesmente cidadãos, se manifestaram solidários, e muito bem, com a crise que o então Global Media Grupo (JN, DN, TSF, entre outros) vivia, nomeadamente os seus profissionais (para além da frágil continuidade destes históricos e relevantes títulos informativos). Escreveram-se textos e reflexões bem contundentes e defensores dos jornalistas e do jornalismo.
Não deixa de ser bem relevante e um sintoma preocupante que o jornalismo local (jornalistas e os próprios órgãos de comunicação locais… nem uma palavra das rádios, jornais ou plataformas informativas digitais) se veja “obrigado” a esconder-se e a calar-se perante estes condenáveis acontecimentos.
Infelizmente, em muitos territórios (a começar pelo interior do país), o jornalismo local encontra-se refém de uma teia de dependências financeiras, políticas e institucionais que comprometem a sua independência (ou, se quisermos, que vão garantindo alguma da sua sobrevivência). A proximidade com o poder transforma-se, frequentemente, numa relação de subserviência. Dependendo de apoios, publicidade institucional ou favores, muitos órgãos de comunicação locais acabam por abdicar da sua função crítica, transformando-se em meros veículos de propaganda ou complacência oficial. Esta realidade enfraquece o debate público e empobrece a democracia local, deixando o cidadão sem voz e sem instrumentos para exigir escrutínio, transparência e responsabilidade.

Mas há silêncios que deveriam ser quebrados, rompidos e evitados, com coragem e frontalidade, com ética, dever, rigor e solidariedade profissionais. Hoje, uns, pela amostragem, amanhã serão outros, até ao silêncio total. E depois, não haverá “grito” ou revolta que se façam ouvir.
Há um mal silencioso que corrói o jornalismo local: a excessiva dependência. Dependência de subsídios, de publicidade institucional, de “boas relações” com quem governa. Quando a sobrevivência da comunicação social local depende da simpatia do poder, a liberdade de informar transforma-se em miragem. E assim, em vez de questionar, elogia-se; em vez de fiscalizar, calamo-nos. Esta subserviência, muitas vezes disfarçada de “cooperação”, é um atentado à própria essência do jornalismo. Um jornalismo que não é livre não serve os cidadãos, serve apenas o poder. E quando o jornalismo se ajoelha, a democracia perde a voz.
É nas câmaras, nas juntas, nas assembleias municipais que as decisões tocam diretamente a vida das pessoas e das comunidades. E é precisamente aí que o jornalismo tem de estar atento, vigilante, e ser incómodo. É dever do jornalismo local não aplaudir, mas questionar; não alinhar, mas escrutinar/fiscalizar; não servir o poder, mas servir o público e a democracia. Quando o jornalismo deixa de perguntar “porquê?” ou “como?”, abre-se a porta à opacidade, ao favoritismo e à impunidade. E o preço é pago por todos nós, enquanto sociedade/comunidade (incluindo os próprios jornalistas).

Uma ressalva final, porque é (foi) público, meritória e honrosa para a posição de dois jornalistas de Aveiro, João Peixinho e Rui Cunha, que não calaram a sua voz, nem se refugiaram no cómodo silêncio:

“Parece impossível aparecer alguém a concordar com o tratamento dado ao jornalista na sede de campanha da coligação PSD-CDS-PPM, mas há pessoas que conseguem. Da minha parte, e espero que sejam muitos mais a pronunciar-se sobre o assunto, aqui vai também a minha solidariedade com o Gonçalo e a Ria. Os que tinham maior responsabilidade naquela sala - e não os que deram gritos e disseram "rua" - não disseram mais nada depois do que se passou. Será um tipo de comportamento a manter e estaremos cá para reagir”. João Peixinho

“É inaceitável que o exercício de fazer perguntas, por incómodas, disparatadas ou repetidas que sejam, seja perturbado por apupos, vaias ou o que for. A minha solidariedade com a Ria”. Rui Cunha