Artigo de Opinião

Nem Medalha, nem Aclamação: tarde e a más horas. E se acontecer...

06.08.202514:47
Reconhecimento Estado da Palestina

A par da hipocrisia política, a incoerência e a incapacidade de afirmação são das piores imagens do atual Executivo da AD, transformando-o no pior governo desde Abril de 74, bem para além do trágico período da Troika.

A Liberdade de um povo, a sua Soberania e o total respeito pela Dignidade Humana e pelos Direitos Fundamentais não se compadecem com “seguidismos” geopolíticos, com fações ideológicas, com olhar o mundo a “preto e branco” (de um lado nós, os bons, e do outro lado os maus).
A Liberdade de um povo, a sua Soberania e o total respeito pela Dignidade Humana e pelos Direitos Fundamentais não se compadecem com opções e decisões contraditórias e incoerentes, hipócritas e cobardes (se for no contexto e local A rasgamos vestes contra, se é com o povo B e nação C defendemos tudo e o seu contrário).
Como canta Chico Buarque, numa parte da sua canção “Roda Viva” (álbum editado em 1968), música que se tornaria uma referência na luta e resistência contra a censura e a repressão durante a ditadura militar: “(…) A gente vai contra a corrente, até não poder resistir. Na volta do barco é que sente, o quanto deixou de cumprir. (…)”.
Deveria ser esta a capacidade de afirmação soberana, de posicionamento (sem amarras estratégicas), de convicção política que determinaria as opções do Governo português: assumir com responsabilidade, com dever e dignidade as suas opções, com resistência (e insistência) e mesmo contra a corrente.
Aliás, aconselhava-se ao Primeiro-ministro, e já agora ao próprio Ministro do Estado e Ministro dos Negócios Estrangeiros, a leitura do livro “A Liberdade é uma luta constante” da filósofa, professora e ativista norte-americana Angela Davis, sobre resistência, solidariedade, história e memória internacionais.

Depois de meias-palavras, de críticas e condenações a recuos diplomáticos, depois de, como é tão nosso apanágio, continuamos um país à espera que outros decidam por nós, apenas focados nas “maiorias” ou nos primeiros passos que os ditos “parceiros estratégicos e institucionais” tomem e decidam, para irmos atrás… sem vontade própria, sem afirmação soberana, sem assumirmos as nossas próprias decisões e opções. Sabemos bem a tragédia e irrelevância deste nosso atributo. Basta recordar o “papelinho de mordomo” de Portugal (e Durão Barroso) na denominada “Cimeira das Lajes”, em 2003, que abriu o caminho para o conflito no Iraque, com base numas supostas e eventuais inexistentes armas de destruição maciça.

Em setembro de 2024, Portugal aprovou, nas Nações Unidas, o apelo ao fim da ocupação israelita dos territórios palestinianos ocupados. Têm sido, mesmo que ténues, proferidas críticas a Israel sobre abusos e atropelos ao Direito Internacional. Portugal reforçou a sua comparticipação à UNRWA. Já por algumas vezes (se calhar poucas) a diplomacia portuguesa evidencia a solução dos dois Estados como uma forma possível de alcançar a paz naquela região do Médio Oriente.
É agora conhecida a intenção (a ver vamos se concretizável) do Governo reconhecer, em setembro, na ONU, o Estado da Palestina… quando 147 dos 193 países já o declararam, aos quais se juntarão França, Reino Unido, Malta e Canadá, segundo as mais recentes posições diplomáticas.
Até lá, fica pelo caminho uma posição quanto ao genocídio que se vive em Gaza, à degradação humanitária que se assiste e que o governo e a estrutura diplomática israelita tentam perverter, à fome e à subnutrição infantil (referência que Portugal objetou no texto final da recente cimeira da CPLP). Até lá fica a recente votação vergonhosa e ideológica na Assembleia da República com o chumbo, no passado mês, do reconhecimento do Estado da Palestina.
Até lá, fica pelo caminho um redundante “mas…” que coloca o país na subserviência estratégica de outros países ou da comunidade internacional.

Apercebendo-se de que já não há como esconder o que se passa em Gaza e na Palestina (que há muito ultrapassou o aceitável como uma resposta, legítima, ao 7 de outubro de 2023), já não há como esperar um retrocesso da política ocupacionista, expansionista e nacionalista de Netanyahu e dos ultraconservadores extremistas e radicalistas que integram, já não há como esconder o genocídio e a crise humanitária… apercebendo-se que a própria Europa demora a definir a sua posição conjunta e que já são poucos os países europeus a continuar a assobiar para o lado e a pactuar com a ação israelita (muito por causa do suporte norte-americano), Portugal lá tomou a decisão de, eventualmente, ponderar o reconhecimento da Palestina como um Estado livre e soberano.
Como se diz na gíria popular “mais vale tarde que nunca”, mesmo que “tarde e a más horas”.

O Primeiro-ministro afirmou, no final da passada semana, que não queria nenhuma medalha pela decisão de prever o reconhecimento do Estado da Palestina. E não, Sr. Primeiro-ministro, não quer, nem tem que levar medalha alguma.
Primeiro, porque esse passo ainda não foi dado, nem concretizado. Bem sabemos a desconfiança que impera sobre este seu (des)Governo quanto à solidez das opções, medias e políticas. E mais não é que a obrigação humanista, democrática e política.
Segundo, porque esse reconhecimento mais não é que uma “obrigação política e diplomática”, não concretizada antes por mero calculismo ou cobardia governativa. E fica já excluída a narrativa do “e nos outros governos”? Não é claro que a vontade desse reconhecimento não existisse; é clara a mudança e alteração da realidade desde o final de 2023; e sem qualquer constrangimento se pode afirmar que tal já poderia ter acontecido. Mas não foi e o facto do Governo ser este, de se ter apresentado como alternativa e diferenciador da anterior governação, exige-se ação concreta e corajosa e não desculpas esfarrapadas.

Pena que os exemplos da Bulgária, Chipre, Hungria, Polónia, Roménia, Eslováquia, Suécia, Noruega, Irlanda, Espanha e, mais recentemente, a Eslovénia que, inclusive, é o primeiro país da UE a proibir o comércio de armas com Israel.
Sem jogos geopolíticas, sem subserviências internacionais, sem que outros ditem as suas posições e definições governamentais e diplomáticas. Marcando um posicionamento próprio, livre, corajoso e consistente. Longe das desculpas hipócritas e medricas de que atos isolados não têm valor, nem peso político.

Não precisamos de revisitar saudosismos do "orgulhosamente sós" (ou dos falsos neutralismos, como referiu, muito bem, há dias o Daniel Oliveira, no jornal Expresso), mas fugir, tapar os olhos e andar ao sabor da corrente, ou, pior ainda, dar espaço às narrativas israelitas de manipulação da realidade e dos factos, enquanto a guerra arrasa e destrói é que nem deveria ser solução ou opção.