Artigo de Opinião

As mudanças no visível

23.06.202510:34
Liderança

As mudanças no visível

Em tudo o que verdadeiramente importa na vida, há sempre um ponto cego, uma zona de sombra, um intervalo entre o que sabemos e o que julgamos saber. E é aí, nesse desequilíbrio entre o visível e o invisível, entre a certeza que apregoamos e a dúvida que ocultamos, que reside o verdadeiro desafio: como prosseguir sem perder o rumo? Como avançar sem ceder naquilo que, no fundo, nos define — os valores?

É fácil falar de ética quando não estamos perante escolhas reais. Mais difícil é mantê-la viva — e ativa — quando o caminho exige pragmatismo, negociação, cedência. Mas talvez seja precisamente aí que a ética se distingue da legalidade. Muitos confundem ambas, talvez por conveniência, talvez por ignorância. Mas a diferença é estrutural. A legalidade muda: ajusta-se às vontades do tempo, dobra-se ao poder do número, rescreve-se a cada legislatura. A ética, essa, não se vota nem se legisla. É feita de matéria mais densa — como se estivesse escrita num tempo anterior ao tempo, num lugar onde os princípios não se acomodam à conjuntura.

Ora, com isto em mente, talvez possamos esboçar três grandes arquétipos — três formas de estar no mundo:

  1. Os que têm na ética a sua origem e o seu destino.
  2. Os que vivem dentro da moldura da lei, convencidos de que o que não é proibido é, por defeito, permitido.
  3. E os que não se incomodam com nenhuma das duas — seguem, avançam, ocupam, vencem, e no fim dizem: “Está feito.”

Mas nem tudo é cinismo. Ainda há lugares — e momentos — em que se escuta mais do que se fala, em que se pondera antes de agir, em que se diz “não sei” sem vergonha. Foi, talvez, por acreditar que algo assim podia acontecer, que fui ao Teatro Aveirense. Eu, que não costumo ir — nem por protocolo, nem por obrigação. Mas desta vez, fui. Porque pressenti que naquele espaço, naquela noite, não se tratava apenas de apresentar candidatos às Juntas de Freguesia de Aveiro. Tratava-se de outra coisa. De um gesto. De uma afirmação.

Luís Souto de Miranda apresentou a sua equipa com serenidade. Não houve fogo-de-artifício, nem palavras de plástico. Houve, sim, presença. E houve um gesto simbólico que, na política, nem sempre é tão simbólico como devia: rodeou-se de pessoas com pensamento próprio. Manuel Assunção, antigo reitor da Universidade de Aveiro, foi um deles. Isménia Franco e João Jubero, jovens mandatários, completaram o trio — com energia, convicção e a ausência daquele cansaço de quem já viu tudo e já desistiu de tudo. Os três tiveram um discurso de esperança na candidatura, em Aveiro mas sobretudo no canditato.

O teatro estava cheio. Ou talvez tenha sido enchido. Por eles — e por mim, que lá estive, contra o meu hábito. E foi lá, nesse espaço de palco e plateia, que se fizeram ouvir palavras que, por uma vez, não pareceram decoradas.

Manuel Assunção falou mais alto sem levantar a voz. E falou tão bem. Com a cadência de quem sabe o peso das palavras. Não precisou de gritar para se fazer ouvir. Não precisou de exaltar para comover. Limitou-se a estar presente, como quem se põe inteiro numa afirmação simples e definitiva:
“Este é o candidato vencedor.”

Não se tratou de um elogio desenfreado, nem de um alinhamento automático. Foi, antes, uma leitura clara do momento. De alguém que, sendo independente, não está isento — está implicado. Alguém que não se esconde atrás do silêncio confortável, mas assume, sem hesitação, a sua convicção. Não falou das qualidades de Luís — não precisou. Disse apenas o essencial: que, neste tempo e neste lugar, aquele é o nome certo. E fê-lo com um gesto que, em política, é cada vez mais raro: o gesto de confiar.

Porque é disso que falamos, afinal — de confiança. E de coerência. E de ética. Não a ética como bandeira ocasional, mas como linha de fundo, como critério permanente, mesmo quando é difícil. Ou sobretudo quando é difícil.

E talvez seja por isso que a imagem da balança, com os seus dois pratos e o seu fiel ao centro, me voltou à cabeça. O equilíbrio, diz-se, é quando o peso dos dois lados se iguala. Mas o peso, como sabemos, depende do lugar onde estamos. A massa pode ser igual, mas o contexto muda tudo. Talvez esteja aí o maior desafio: perceber que a justiça não está apenas no equilíbrio aparente, mas na consciência do lugar de onde se observa.

A política, como a vida, é feita de lugares. E de gestos. E de presenças. Naquela noite, no Teatro Aveirense, houve tudo isso. E, mais importante, houve algo que já se sente raro: a sensação de que o invisível — os princípios, os valores, a coerência — estava finalmente a passar para o lado do visível. Como a luz que, ao fim da tarde, se demora sobre a ria. Suave. Persistente. Incontestável.

E houve, no fim, um gesto ainda mais raro — tão simples quanto poderoso: o Hino Nacional foi tocado. Sem vergonha, sem disfarce, sem medo de parecer demodé ou demasiado solene. Como se cantar Portugal em voz alta fosse, afinal, um ato de coragem. Ou de reencontro. Ou apenas de normalidade — a que já não estamos habituados