Uma equipa internacional de cientistas liderada pela Universidade de Aveiro e pelo Instituto Galego de Física de Altas Energias mostra, num artigo publicado na Physical Review Letters, que a “colisão de buraco negro mais pesada” alguma vez observada pode, na verdade, ser algo ainda mais misterioso.
As ondas gravitacionais são ondulações na estrutura do espaço-tempo que viajam à velocidade da luz. Têm origem nos eventos mais violentos de nosso Universo, trazendo informações sobre as suas fontes. Desde 2015, a humanidade pode detectar e interpretar as ondas gravitacionais graças aos dois detectores LIGO (Livingston e Hanford, EUA) e ao detector Virgo (Cascina, Itália). Até o momento, estes detectores já observaram cerca de 50 sinais de ondas gravitacionais. Todos eles têm origem na colisão e fusão de buracos negros e/ou estrelas de neutrões, permitindo-nos aprofundar o nosso conhecimento sobre estes objetos.
A promessa das ondas gravitacionais vai, no entanto, muito mais longe do que isso, visto que elas poderão fornecer-nos evidências sobre objetos anteriormente não observados e até mesmo inesperados e lançar luz sobre grandes mistérios científicos da atualidade, como a natureza da matéria escura. A concretização desta promessa pode, de facto, já ter acontecido.
Em setembro de 2020, as colaborações LIGO e Virgo anunciaram ao mundo o sinal de ondas gravitacionais GW190521. De acordo com a sua análise, o sinal é consistente com a colisão de dois buracos negros pesados, de 85 e 66 vezes a massa do Sol, que produziu um buraco negro final com 142 massas solares. O último buraco negro foi o primeiro de uma nova família de buracos negros, até então não observada: buracos negros de massa intermedia. Esta descoberta é de grande importância, visto que tais buracos negros são o elo perdido entre duas famílias de buracos negros bem conhecidas: os buracos negros de massa estelar que se formam a partir do colapso das estrelas e os buracos negros supermassivos que se escondem no centro de quase cada galáxia.
Mas esta interpretação trouxe um enorme desafio. Se o que pensamos que sabemos sobre como as estrelas vivem e morrem estiver correto, o mais pesado dos buracos negros em colisão não se pode formar a partir do colapso de uma estrela no final de sua vida. Num certo sentido é uma massa proibida para buracos negros.
Num artigo publicado hoje na Physical Review Letters, uma equipa de cientistas liderada pelo Juan Calderón Bustillo, do Instituto Galego de Física de Altas Energias, e Nicolás Sanchis-Gual, investigador pós-doutorado na Universidade de Aveiro e no Instituto Superior Técnico (Lisboa), juntamente com o Carlos Herdeiro e o Eugen Radu (Aveiro), bem como colaboradores de Valência, Monash University e The Chinese University of Hong Kong, propôs uma explicação alternativa para a origem do sinal GW190521: a colisão de dois objetos exóticos conhecidos como estrelas bosónicas, que são um dos candidatos a constituir o que conhecemos como matéria escura. Dentro dessa interpretação, a equipa conseguiu estimar a massa de uma nova partícula constituinte dessas estrelas, um bosão ultraleve com uma massa bilionésimos de vezes menor que a do eletrão.
Sanchis-Gual explica: “As estrelas bosónicas são objetos quase tão compactos como os buracos negros, mas, ao contrário deles, não têm uma superfície ``sem retorno”. Quando colidem, formam uma estrela bosónica mais pesada que se pode tornar instável, eventualmente colapsando num buraco negro e produzindo um sinal consistente com o observado. Ao contrário das estrelas regulares, que são feitas do que comumente conhecemos como “matéria”, as estrelas bosónicas são feitas do que conhecemos como bosões ultraleves. Esses bosões são um dos candidatos mais interessantes para constituir a matéria escura, que forma ~ 27% do Universo”.
A equipa comparou o sinal GW190521 com simulações computacionais de fusões de estrelas bosónicas e descobriu que estas explicam os dados um pouco melhor do que a análise conduzida por LIGO e Virgo. O resultado implica que a fonte teria propriedades diferentes das declaradas anteriormente. Nas palavras de Calderón Bustillo: “Em primeiro lugar, não estaríamos mais a falar sobre a colisão de buracos negros, o que elimina a questão de lidar com um buraco negro proibido. Em segundo lugar, como as fusões de estrelas bosónicas são muito mais fracas, inferimos uma distância muito mais próxima do que a estimada por LIGO e Virgo. Isso leva a uma massa muito maior para o buraco negro final, de cerca de 250 massas solares”.
A equipa descobriu que, embora a análise tenda a favorecer "por design" a hipótese de buracos negros de fusão, uma fusão de estrelas bosónicas é realmente preferida pelos dados, embora de uma forma não conclusiva. Jose A. Font, da Universidade de Valencia, diz “Os nossos resultados mostram que os dois cenários são quase indistinguíveis, dados os dados, embora a exótica estrela bosónica seja ligeiramente preferida”.
Este resultado sugere não apenas a primeira observação de estrelas bosónicas, mas também do seu bloco de construção, uma nova partícula conhecida como bosão ultraleve (vetorial). Estes bosões ultraleves foram propostos como constituintes do que conhecemos como matéria escura, que constitui cerca de 27% do universo observável. Carlos Herdeiro, da Universidade de Aveiro afirma que “um dos resultados mais fascinantes é que podemos de facto medir a massa desta suposta nova partícula de matéria escura, e que um valor zero é descartado com grande confiança. Se confirmado pela análise subsequente desta e de outras observações de ondas gravitacionais, nosso resultado forneceria a primeira evidência observacional para um candidato de matéria escura há muito procurado”.
Este trabalho foi destacado no artigo de capa da “BBC Science Focus”, edição de 17 de fevereiro de 2021, sobre “dark stars”.
Fonte: UA