Na maioria das campanhas publicitárias de prevenção da Sida os discursos são pouco esclarecedores, o preservativo masculino surge como ‘personagem’ central da prevenção e a desigualdade de género, que confina à mulher um papel de menor domínio, está bem patente. O estudo da Universidade de Aveiro (UA), que analisou a forma como a sexualidade e as diferenças entre homens e mulheres foram retratadas nos spots publicitários de prevenção da infeção pelo VIH/Sida, entre dezenas de campanhas realizadas na década de 2000, identificou também “resquícios de estigma e discriminação” em relação aos portadores e portadoras do VIH e estereótipos que ainda se mantêm em campanhas analisadas entre 2010 e 2015. Nestes últimos anos, aponta a investigadora Ana Frias, “parece haver até um decréscimo no investimento da promoção de campanhas”.
O estudo, que começou por analisar o discurso de 28 campanhas portuguesas, 26 brasileiras, quatro angolanas e 23 moçambicanas, datadas da primeira década deste século, permitiu também compreender que, no que diz respeito às mensagens de prevenção da infeção VIH/Sida, “nem sempre os discursos veiculados mostraram ser claros”. “A tão proclamada igualdade de género e o empoderamento das mulheres defendida pela UNAIDS [Programa das Nações Unidas para a prevenção da Sida] ainda não integra o discurso de muitas campanhas”, garante Ana Frias, que aponta: “a análise de campanhas posteriores a 2010 é exemplo disso”. Por outro lado, diz a autora do estudo, “percebe-se também que, atualmente, em Portugal, os esforços comunicacionais neste sentido, têm tido menos visibilidade mediática. Parece existir um desinvestimento na promoção de campanhas, por exemplo, na televisão”. Essa questão, lamenta, “é preocupante na medida em que pode gerar uma falsa sensação de invulnerabilidade à problemática que ainda não foi extinta”.
A autora da investigação, apresentada em abril e desenvolvida no âmbito do Doutoramento em Didática e Formação da UA, refere mesmo que “na grande maioria das campanhas houve informação pouco clara e por vezes até incorreta”. Por outro lado,” no que diz respeito às questões de sexualidade e de género, prevaleceram indícios de desigualdade e os valores, quando veiculados, também não ultrapassaram a noção de responsabilidade”.
Como esclarece a investigadora Ana Frias, este estudo, desenvolvido a partir do projeto “Sexualidade e Género no Discurso dos Media: implicações sócio-educacionais e desenvolvimento de uma abordagem alternativa na formação de professores/as”, coordenado por Filomena Teixeira (Orientadora de Ana Frias durante o Doutoramento), no Centro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Professores da UA, pôde ainda intervir na formação de docentes propondo uma nova metodologia de abordar a educação em sexualidade com base na leitura crítica das mensagens de sexualidade e de género veiculadas nestes media. “O estigma (presente nas campanhas) ainda surge associado à problemática do VIH/Sida e a não discriminação, tão proclamada pela UNAIDS, parece ser, ainda hoje, uma meta por concretizar”, aponta Ana Frias, enfermeira no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), que realizou o Doutoramento em Didática e Formação na UA com a tese “Sexualidade e Género em Campanhas de Prevenção da Infeção VIH/Sida”. Igualmente preocupantes são “as mensagens pouco esclarecedoras, sobretudo por não clarificarem modos de prevenção, mas também pelo facto de não fazerem uma alusão direta e clara à Sida, pela ambiguidade de conceitos, ou até mesmo por mensagens incorretas”.
Em relação às consequências da desigualdade de género e assimetrias veiculadas nas campanhas analisadas, assentes em desiguais relações de poder, “medeiam a reprodução de identidades e de modos de ser feminino e masculino por entre quem as consome”. Na verdade, aponta Ana Frias, “o currículo cultural veiculado nos media, mais concretamente nas campanhas em questão, se não for criticamente interpelado por quem as visiona, atua subliminarmente, ditando verdades e normas, que nem sempre correspondem à realidade”.
Patente nos 81 spots publicitários, oriundas daqueles quatro países da CPLP, “o preservativo masculino surge como ‘protagonista’ central da prevenção do VIH/Sida”. As campanhas de prevenção do corpus, que promovem o uso do preservativo, “jamais concebem a possibilidade de outras práticas sexuais que não as convencionais descurando por exemplo, o sexo oral, nunca sequer insinuado nestes discursos”.
Reconhecendo-se a importância do uso de preservativos feminino e masculino, na prevenção da infeção VIH/Sida e, por conseguinte, a necessidade de os promover nas campanhas, a investigadora questiona “por que motivo se apela exclusivamente ao preservativo masculino, a utilizar apenas enquanto parte integrante do ‘sexo convencional’, ou seja, penetrativo e preferencialmente entre heterossexuais?”. Nos discursos analisados, sublinha Ana Frias, “os resultados apontam para a ideia de que a utilização do preservativo masculino é mais consensual em relações sexuais penetrativas e menos em relações em que ocorra o sexo oral, por exemplo”. Para além disso, tendo surgido o sexo anal apenas no domínio da homossexualidade [numa das campanhas brasileiras analisadas], sugere-se num discurso de sexualidades heteronormativas que esta via penetrativa é moralmente menos aceite, tal como o é ainda a homossexualidade”. Ou seja, “nos discursos mediáticos de prevenção da infeção VIH/Sida, falar de preservativo parece estar, à partida, associado ao preservativo masculino e falar de sexo, parece implicar sobretudo práticas sexuais aliadas à heterossexualidade”. A maioria das campanhas analisadas veicula visões estereotipadas da sexualidade e do género assentes em desigualdades de poder entre homens e mulheres. “As masculinidades e feminilidades frequentemente veiculadas nas campanhas destes quatro países mostraram fazer parte de dois territórios diferentes, bem definidos, onde os homens disputam autonomia, supremacia, confiança, e virilidade, e as mulheres a beleza, a sensualidade, a aparência física e a docilidade”, esclarece a investigadora.
O estudo alerta também para a forma como as campanhas omitem corpos diferentes da norma, pessoas envelhecidas e a homossexualidade feminina. As campanhas incluem preferencialmente pessoas em que os rostos e corpos seguem linhas padronizadas e tradicionalmente assumidas como estéticas dentro das normas sociais e culturais de Portugal, Brasil, Moçambique e Angola.
Comum a todas as campanhas, esclarece, “está um padrão de feminilidade com formas corporais harmoniosas e arredondadas, dentes brancos e alinhados, sorrisos apelativos e rostos maquilhados, silhuetas definidas, por exemplo, e um de masculinidade associada ao porte atlético e estatura média-alta, dentes brancos e alinhados, que contribuem para definir, ainda melhor, os limites da feminilidade e da masculinidade, e uma visão dicotómica”. “O reconhecimento da dignidade humana inerente a homens e mulheres, não pode ser nunca uma questão de ‘cosmética’ nos discursos preventivos da infeção VIH/Sida”, alerta a enfermeira do CHUC. Enquanto seres sexuados que são, “com iguais direitos à educação e à informação, mulheres e homens devem poder ser, independentemente da situação de vida e contexto em que se encontrem, alvos destes esforços comunicacionais”.
Um investimento sério, apela o estudo, na implementação de uma efetiva educação em sexualidade, desde cedo, que contemple a leitura crítica das campanhas, constitui um fator diferenciador na resposta à problemática.
Na verdade, lembra Ana Frias, “saber ler criticamente os media é imprescindível ao exercício da cidadania e uma oportunidade à implementação de uma efetiva educação em sexualidade – implicada na prevenção do VIH/Sida, na aprendizagem de conhecimentos cientificamente relevantes, na promoção da saúde sexual, na consagração dos direitos sexuais e no respeito pela diversidade cultural e sexual”. Assim, “à escola, aos professores e professoras cabe, em ambos os domínios, um papel especialmente relevante”.