O que poderia ter sido mais um episódio igual a tantos outros que repetidamente, ano após ano, se sucedem na Ria de Aveiro foi, desta vez, muito diferente!
Tudo começou no final de Maio quando um biólogo, sócio da Quercus, detetou a presença de uma colónia de andorinha-do-mar numa marinha próxima ao Centro Municipal de Interpretação Ambiental de Aveiro.
A localização da colónia? Numa “ilha” acidentalmente formada em sequência de uma intervenção com vista a manutenção preventiva numa marinha. A entrada de água das marés na marinha, enquanto a obra decorria, não cobriu a zona central que havia ficado a uma cota ligeiramente mais alta que a restante área da marinha.
É frequente que quando ocorrem intervenções na zona do salgado que envolvam drenagem de marinhas ou movimentação de solos (lodos, areias) espécies nidificantes na Ria como a andorinha-do-mar-anã ou o borrelho-de-coleira-interrompida, utilizem esses locais para realizar as suas posturas a partir de abril/início de maio. Também é frequente, que estando os ninhos (geralmente em colónia) instalados nesses locais, as intervenções continuem normalmente (enchimento da marinha, circulação de máquinas) destruindo toda uma colónia de nidificação.
Não foi contudo o que aconteceu no presente caso! Dado o alerta do que poderia vir a suceder caso a intervenção continuasse sem ter a devida atenção e acompanhamento, logo se estabeleceu um diálogo entre o Núcleo Regional de Aveiro da Quercus e os proprietários do projeto – as empresas marítimo-turísticas Incrível Odisseia e Ideias Salgadas – que se prontificaram de imediato a colaborar na preservação da colónia conduzindo-a ao sucesso.
A obra passou a ter mais uma componente, mais um desafio, e seguiu-se uma luta contra as marés de junho que estando muito altas conseguiam entrar na marinha subindo o nível da água no seu interior e alagando a ilha. A própria comporta existente no local apresentava fissuras que com a pressão da água salgada da Ria deixava entrar água na marinha. Sendo a ilha muito baixa corria-se o risco de inundação de toda a colónia que em final de maior e início de junho se encontrava em plena incubação e processo de instalação de novos ninhos, sobretudo de andorinha-do-mar mas também de borrelho-de-coleira-interrompida. A colaboração da Incrível Odisseia e Ideias Salgadas foi preponderante. Nesse período foi necessário controlar as marés para que em baixa-mar se procedesse à abertura da comporta para deixar vazar a água da Ria que havia entrado em preia-mar. Foram controlos realizados, pode-se dizer, ao minuto, dia e noite, para garantir a sobrevivência da colónia.
Apesar do esforço, no início de julho contabilizaram-se três ninhos inundados, pelo que se instalou uma bomba para proceder ao esvaziamento mais intensivo da marinha, ganhando-se uma importante margem de segurança.
Ao todo terão nidificado com sucesso nesta colónia mista, 55 a 60 casais de andorinha-do-mar-anã e 15 a 20 casais de borrelho-de-coleira-interrompida. A marinha serviu ainda de maternidade a 4 casais de perna-longa que tendo nidificado nas proximidades trouxeram os filhotes para este espaço. Acresce ainda o facto das condições criadas (pela manutenção do nível da água) terem permitido a presença ao longo deste período de diversas outras espécies típicas da Ria de Aveiro como sejam pilrito-comum, borrelho-grande-coleira, maçarico-de-bico-direito e perna vermelha-comum.
Este foi sem qualquer dúvida um contributo fundamental para a preservação da andorinha-do-mar-anã. Trata-se de uma espécie migradora protegida na Europa e ameaçada na Ria de Aveiro, que nos últimos anos tem visto o seu habitat de nidificação sujeito a uma enorme pressão pela atividade turística, sendo comum observar ninhos destruídos, ovos pisados e crias esmagadas devido à circulação de turistas no seio de algumas das salinas onde esta espécie tem nidificado.
No próximo ano esta ilha não existirá mais. Contudo, numa marinha adjacente também sob gestão da Incrível Odisseia e Ideias Salgadas, está já em processo a recriação das condições ideais com o objetivo de tentar acomodar uma nova colónia no próximo ano, garantindo assim a presença e o sucesso reprodutor destas espécies nesta área, promovendo a preservação da biodiversidade na Ria de Aveiro.
Texto: Núcleo Regional de Aveiro da Quercus